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segunda-feira, 24 de novembro de 2008




Achados e Perdidos

Araçá Azul
O radicalismo tropicalista de Caetano Veloso

Quando Caetano Veloso e Gilberto Gil voltaram do exílio eles encontraram um recorte histórico de desilusões políticas e de aniquilamento da liberdade de expressão. Além disso eles encontraram uma música de resistência, engajada politicamente, que detinha verdadeiramente o prestígio da crítica, em contra-face a uma facção vendida e alienada do mercado. Eles tentaram se colocar no meio termo do engajamento e distante ao máximo da inércia criativa e da estagnação opinativa. É desse tempo o disco Araçá Azul. Corriam os anos 70, mais precisamente 1973.

Muito se tem falado desse disco. Muitos confetes foram jogados, como também muita escatologia oportunista também. Caetano Veloso não é lá de fazer muitos amigos. Muito se deve ao seu posicionamento de comentarista, nem sempre certeiro, sempre sincero e algumas vezes cretino ao extremo. Caetano fala o que quer e escuta o que não quer. De fato, Caetano é bem melhor compondo do que teorizando. Mas esse não é um disco que escape ao polêmico. E por isso a inconstância de teses. Historicamente foi o disco mais devolvido do seu tempo. Historicamente foi o disco mais cultuado pelos descolados e desconsolados do seu tempo. Como atesta o atestado da capa: um disco para entendidos, inclusive na sua concepção gay.

Quando da volta, sem o exílio nas costas, mas com as marcas do tempo na fisionomia, Caetano precisava reconhecer e ser reconhecido, ao que parece pelo seu lançamento. Precisava redemarcar o seu re-torno. E ele o fez em grande estilo, respaldado pelo respeito e prestígio dos concretistas do grupo Noigrandes, mais especificamente na pessoa de Augusto de Campos, a quem dedica e a quem remete como fonte inspiradora a música “De Palavra em Palavra”.

Sem ter necessariamente uma incidência completa e unilateral do concretismo, mas sim um acoplamento de interesses e visões artísticas, Caetano juntou o útil ao necessário, justamente para quem precisava ser re-legitimado. E se fez então um dos maiores impérios opinativos da década de 70 e 80. De um lado os autores do concretismo, que já ostentavam um poder imenso de determinar o que era bom e o que era descartável nas artes tupiniquins, do outro lado chegou então Caetano e a sua trupe multicolorida, inversa, invertida, ou não, quem sabe? pode até ser...

Araçá Azul é feito de uma matéria concreta, tropicalista, experimental, mas decididamente nada inovadora, pois afinal aqueles elementos ali já tinham sido experimentados dentro ou fora do país, e ainda dentro ou fora do próprio tropicalismo. Mas não é do ineditismo que se sustenta essa obra. É mais ainda pela sua ousadia e liberdade criativa do que propriamente pela bandeira de uma estética qualquer. E nisso tem de muita coragem, partindo de quem precisava do mercado naquele exato momento, daí a sua indiscutível durabilidade.

Araçá Azul tem raízes brasileiras e estrangeiras, como propagara o neo-antropofagismo tropicalista. Tem também colagens musicais, intertextualidades e citações diversas. A descontinuidade e a fragmentação não são apenas olhos oculares do tempo, são necessidades expressas. Como também são necessidades de engajamento indireto e predileto pela voz e vozes latinas, nesse disco na figura de Dominguez e seu bolerão “Tu me acostumbrastes”, como a que dizer estão abertas as veias da América Latina.

Então se juntaram aos poucos e aos pedaços o samba de roda de Edith Oliveira; o experimentalismo de Sousândrade, via concretismo de Augusto; mais a pegada rockeira e visceral de Lanny Gordin e seu circo psicodélico; a bossa de João Gilberto, uma referência sempre; a desconstrução das colagens sonoras, através de Hermeto e Walter Smetack; a providência eclética e de vanguarda do erudito Rogério Duprat; e a poesia fina de Caetano Veloso em Araçá Azul: “Araçá Azul é sonho-segredo / Não é segredo / Araçá Azul fica sendo / o nome mais belo do medo // Com fé em Deus / eu não vou morrer tão cedo // Araçá Azul é brinquedo.

Algumas peculiaridades marcam esse disco eternamente: a capa, com Caetano só de tanga, se olhando em um espelho e que remete à outra capa (deliciosa, por sinal), do disco “Índia” de Gal Costa, do mesmo ano; ao tremendo rock, digo imperdível rock, “Eu quero essa mulher assim mesmo”, uma das versões (de autoria do sambista Monsueto Menezes, de quem Caetano já havia gravado “Mora na Filosofia”, no álbum “Transa”) mais viscerais e pesadas de Caetano Veloso, com um solo insano de Lanny Gordin, colocando a guitarra pelo avesso; e o lado assumidamente gay de Cae, o que não tem problema algum, muito menos solução, apenas é. Imensamente causador de reflexões.

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